Com alta médica negada por não ter registro civil, mãe segue em maternidade 28 dias após dar à luz
Após dar à luz, uma mulher teve alta médica negada após a maternidade de Teresina, no Piauí, verificar que a jovem de 21 anos não tinha registro civil. Ela está há 28 dias na unidade de saúde com o companheiro, já que o casal ainda não conseguiu o documento na maternidade em que a mãe nasceu. As informações são do portal G1.
Quando a jovem nasceu, sua família não recebeu a Declaração de Nascido Vivo – DNV e, por isso, não conseguiu emitir a certidão de nascimento, já que não possuía a declaração da maternidade. Desde então, ela passa por inúmeras situações pela falta de qualquer registro civil, o que a impediu, inclusive, de se casar com o pai de seu filho.
Em janeiro, a mulher teve alta clínica um dia após o parto normal. A direção da maternidade explicou que ela deu entrada na unidade com um documento não oficial e só depois foi descoberto que ela não tinha DNV, o que a impediu de emitir identidade ou qualquer outro documento civil em seu nome.
Para que a criança possa ser liberada é necessário que a DNV seja feita pela maternidade, mas esse documento deve conter os dados da mãe. Sem registro civil, a jovem não tem como ter alta com o seu filho. Assim, a única forma de a família deixar a unidade de saúde é com uma ordem judicial.
Familiares já entraram com um pedido no Ministério Público. A maternidade, que afirmou estar cumprindo a lei e dando todo suporte e apoio à família, informou à Defensoria Pública a situação da jovem, que se dispôs a resolver o caso.
Direitos e princípios violados
A advogada Cláudia Paranaguá, presidente da seção Piauí do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM-PI, frisa que o caso envolve muitos fatores, como a alta médica regida pelo Conselho Regional de Medicina – CRM e a alta administrativa, no caso em razão da falta de documento de identificação dos internos exigida no protocolo interno da maternidade.
“As situações estão correlacionadas, mas distintas. O hospital não autoriza de forma arbitrária a saída da parturiente e seu filho em razão de ausência de documento administrativo, sendo que não estão inaptos sob o ponto de vista médico de saírem da unidade de saúde”, observa Cláudia.
Tais diferenças dizem muito ao Direito, segundo a advogada. “A situação atinge em especial direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, que protegem os cidadãos mãe e filho. Eles existem!”, frisa Cláudia. Ela lembra que leis federais são superiores a qualquer protocolo interno quando entram em colisão.
“Podemos relatar alguns destes direitos e princípios violados, como liberdade, dignidade da pessoa humana, além da proteção integral da criança, previstos em tratados internacionais recepcionados pela nossa Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA como legislação especial.”
Para Cláudia, a situação apresentada também mostra um lado do nosso país de extrema desigualdade. Neste contexto, pessoas se tornam invisíveis quando deveriam ser protegidas na garantia de um núcleo essencial mínimo de existência.
“Assim, a manutenção de mãe e filho, na verdade a retenção ilegal e irregular na unidade de saúde, fere direito fundamental e enseja consequências de várias ordens do Direito, não podendo admitir que a resposta lenta e ineficiente da administração do hospital gere mais danos à mãe e seu filho, à espera de uma correção meramente administrativa. Liberdade para mãe e bebê já!”, defende a advogada.
Sistema normativo
Presidente da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM, Márcia Fidélis, também comenta o caso: “A DNV geralmente é o instrumento hábil à lavratura do registro de nascimento porque é nela que o profissional de saúde atesta elementos importantes como a identificação da parturiente, das circunstâncias do parto e as características do recém-nascido. Contudo, não se pode afirmar que todo e qualquer parto terá acompanhamento médico-hospitalar”.
A especialista lembra que o artigo 54, § 3º da Lei dos Registros Públicos (6.015/1973), estabelece que as Secretarias de Saúde (estaduais ou municipais) podem solicitar que Oficiais de Registro Civil emitam a DNV quando o parto não houver sido acompanhado ou imediatamente sucedido de assistência de profissional de saúde ou parteira tradicional. “Ressalta-se que se trata de uma faculdade de secretarias de Saúde, caso entenda que haja demanda.”
“O sistema normativo brasileiro traz disposições claras e abrangentes para que um registro de nascimento possa ser lavrado a qualquer tempo, enumerando expressamente diversas circunstâncias passíveis de dificultar sua lavratura, cada uma delas acompanhada do procedimento a ser adotado.”
Segundo Márcia, a redação do artigo 46 da Lei 6.015/1973 foi alterada em 2008 para permitir que qualquer registro de nascimento possa ser lavrado diretamente perante o Oficial de Registro Civil, sem qualquer intervenção judicial ou participação do Ministério Público, a menos que se tenha situações especiais em que se suspeite de fraude.
Além disso, em 2013, o Provimento 28 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ detalhou o procedimento de registro tardio, abrangendo as mais diversas situações, que incluem pessoas de qualquer idade, com ou sem DNV, tendo ou não a pessoa registrada capacidade civil. “Ainda que se trate de pessoa absoluta ou relativamente incapaz, desacompanhada do representante legal ou, na omissão deste, o Ministério Público tem legitimidade para requerer esse registro”, acrescenta.
“Portanto, não há qualquer justificativa para que a jovem, aos 21 anos, não tenha sido registrada. A exigência da intervenção judicial é exceção e, mesmo assim, seria da iniciativa do registrador civil que, em situações muito específicas, depois de tentar por todos os meios probatórios que entender cabíveis, e ainda assim, não se convencer de alguma informação declarada. Com as informações que tive acesso pela imprensa, o próprio companheiro dela pode se dirigir ao Ministério Público para que se formule um requerimento ao Oficial de Registro Civil para a lavratura do registro dela.”
Sub-registro no Brasil
O registro civil de nascimento é obrigatório e é condição para o exercício da cidadania, de acordo com Márcia Fidélis. “Essa situação noticiada é um exemplo perfeito da importância dessa providência. Desde que foi criado na esfera civil, diferenciando-se do batistério católico no século XX, as exigências e o procedimento para a lavratura do registro civil de nascimento passaram por constantes mudanças no sentido de facilitar o acesso da população a esse serviço, cada vez mais essencial na sociedade que não para de crescer e na medida em que as relações interpessoais e negociais vão se tornando cada vez mais complexas.”
“As pessoas financeiramente carentes deixaram de pagar pelo registro; a multa por registrar fora do prazo deixou de existir por se perceber que a tentativa de incentivar a agilidade acabou por dificultar ainda mais, porque ninguém queria pagar a multa e muitos se atrasavam; o registro passou a ser universalmente gratuito, mesmo sem ressarcimento ao Oficial de Registro pelo Estado”, pontua a diretora nacional do IBDFAM.
Ela vai em frente: “O registro tardio de crianças deixou de exigir autorização judicial; diante da morosidade de um processo judicial, todo o procedimento passou a ser executado diretamente perante o Oficial de Registro; o Oficial de Registro passou a atuar dentro das maternidades, de forma a proporcionar que o registro seja lavrado antes da alta hospitalar. E nenhuma dessas providências gerou ônus para o usuário do serviço ou para o Estado”.
A especialista aponta que, gradativamente, em termos percentuais, o sub-registro (quantidade de pessoas sem registro civil de nascimento) foi diminuindo no Brasil, em especial após a desjudicialização. Veja os índices:
SUB-REGISTRO 2019 (%) – Últimos dados divulgados pelo IBGE
Brasil: 2,11
Nordeste: 2,50
Piauí: 3,20
Teresina: 2,09 (município onde a não registrada está hospitalizada aguardando alta com o bebê)
Miguel Alves: 4,68 (município que a notícia traz como residência do casal, onde o registro deverá ser lavrado)
SUB-REGISTRO 2007 (%) – Antes da desjudicialização (alteração do artigo 46 da Lei 6.015/73)
Brasil: 12,2
Nordeste: 21,9
Piauí: 33,5 – 7º no país e 2º no Nordeste
Fonte: IBDFAM – (com informações do G1) – Imagem: Reprodução.
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