Entrevista: Advogada explica como funciona o Biodireito e qual a relação da área com o Direito de Família

como funciona o Biodireito

Ramo do Direito Público responsável pela preservação da dignidade humana e da Bioética, o Biodireito promove um conjunto de normas que regulamentam comportamentos médico-científicos em áreas como a Medicina e a Biotecnologia.

Tratativa jurídica dos temas relacionados à Bioética – tema da Filosofia, mais especificamente da ética, que trata de questões relacionadas ao tratamento ético da vida animal –, ele atua na criação de normas de permissões de comportamentos médico-científicos e sanções para os casos de descumprimentos delas.

“A Bioética e o Biodireito tratam de temas essencialmente ligados à vida e às relações sociais”, explica a advogada Adriana Maluf, professora de Biodireito e Bioética e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Segundo a coautora do livro “Bioética, Biodireito e Cuidados Paliativos”, essa área questiona os reais benefícios dos avanços e da aplicação da Biotecnologia, levantando questionamentos como “o direito à vida; o direito à morte digna – respeitando o momento de terminalidade –; a experimentação científica em seres humanos; a relação médico-paciente; a valorização do conceito de autonomia do paciente; a implantação dos cuidados paliativos; e muitos outros”.

Em entrevista ao IBDFAM, a advogada explica como funciona o campo de atuação do Biodireito, quais os princípios que o norteiam e como se dá a relação entre ele e o Direito de Família.

O que é Bioética e Biodireito?

A Bioética pode ser definida como o estudo transdisciplinar entre Biologia, Medicina, Filosofia (ética) e Direito (Biodireito) que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e responsabilidade ambiental, ocupando-se, principalmente, de questões em que não existe consenso.

O termo Bioética surgiu na década de 1970 e tinha por objetivo deslocar a discussão acerca dos novos problemas impostos pelo desenvolvimento tecnológico, de um viés mais tecnicista para um caminho mais pautado pelo humanismo, superando a dicotomia entre os fatos explicáveis pela ciência e os valores estudáveis pela ética.

O Biodireito é um ramo novo do direito público que regula as questões oriundas da Bioética e do desenvolvimento da tecnologia.

Nesse sentido, a ampliação do campo do saber, decorrente das descobertas científicas, do desenvolvimento da Biotecnologia, pela difusão da cultura, pelo implemento do diálogo internacional e mesmo pela globalização econômica, fez com que novos questionamentos surgissem no limiar do novo século acerca dos princípios éticos e morais presentes nas práticas médicas  bem como houve uma tomada de consciência da necessidade da imposição de limites no trato dos seres humanos e animais em virtude do implemento das descobertas científicas.

Assim sendo, novos debates bioéticos se descortinaram nesse milênio, tendo em vista o desenvolvimento da Biotecnologia e que necessitam de regulação do Biodireito.

Como é a atuação no campo da Bioética e do Biodireito?

A Bioética e o Biodireito tratam de temas essencialmente ligados à vida e às relações sociais. Já a Biotecnologia ocupa-se da aplicação dos processos biológicos visando a produção de materiais e novas substâncias para uso industrial, medicinal, farmacológico, entre outros.

Do questionamento sobre os reais benefícios que esses avanços, e sua utilização, trarão efetivamente para a humanidade, defluem muitos questionamentos bioéticos, entre os quais se destacam: o direito à vida; o direito à morte digna – respeitando o momento de terminalidade –; a experimentação científica em seres humanos; a relação médico-paciente, a valorização do conceito de autonomia do paciente; a implantação dos cuidados paliativos, e muitos outros.

O aumento da difusão da tecnologia sobre o corpo e a mente impõe a necessidade de um diálogo amplo, livre e democrático na comunidade científica, tendo em vista a qualidade de vida e o respeito à dignidade da pessoa humana – cânone constitucional – presente no art. 1º, III da CF (dos princípios fundamentais).

Criou-se, outrossim, uma renovação no modo de agir e decidir das partes envolvidas com a ciência médica e biológica: a socialização do atendimento médico, com o consequente surgimento de novos padrões de conduta na relação médico-paciente., do atendimento em massa, da democratização da Medicina; a universalização da saúde; a medicalização da vida (aumento das especialidades médicas); a emancipação do paciente, indicando a necessidade do consentimento informado para as atividades médicas e experimentais; a criação e o funcionamento de comitês de ética hospitalar e comitês de ética para pesquisas em seres humanos, e muitos outros.

Nesse sentido, ocupa-se o Biodireito em normatizar as principais condutas médicas, a fim de que se alcance um equilíbrio no viver científico.

Ou seja, utilizando-se um paradigma de referência antropológico moral: o valor supremo da pessoa humana, de sua vida, dignidade, liberdade e autonomia impõem ao homem diretrizes morais diante dos dilemas levantados pela Biomedicina.

Envolve, assim, um diálogo interdisciplinar que tem por finalidade a compreensão da realidade por meio de sua complexidade física, biológica, política e social. Analisando até onde vão os limites da interferência humana em questões que envolvem os seres vivos.

O impacto do avanço dessas novas tecnologias levaram a comunidade médica e científica ao estabelecimento de parâmetros delineadores das práxis terapêuticas e de pesquisa.

A Bioética corresponde a um movimento cultural humanista que se pode englobar conceitos entre o prático Biodireito e o teórico biopoder.

Vemos assim, que “a Bioética é um produto da sociedade do bem-estar pós-industrial e da expansão dos direitos humanos da terceira geração, que marcaram a transição do Estado de direito para o Estado de justiça, visando a promoção da macrobioética e da responsabilidade diante da preservação da vida em sua mais ampla magnitude”.

O campo de atuação do advogado em Biodireito alcança ações e pareceres técnicos referentes aos temas da saúde: reprodução assistida, esterilização de seres humanos, realização de aborto, pesquisa em seres humanos e animais, alimentação, transplantes, transfusão de sangue, direito à vacinação, utilização de transgênicos, distribuição de remédios, responsabilização civil nas relações médico-pacientes, elaboração de diretivas antecipadas da vontade e consentimento informado, questões referentes à identidade de gênero e sexualidade e muito mais. Trata-se de campo moderno e inovador.

Em que princípios baseiam-se a Bioética e o Biodireito?

Baseia-se a Bioética em alguns princípios: o princípio da autonomia – valoriza a vontade do paciente, ou de seus representantes, levando em conta, em certa medida, seus valores morais e religiosos. Reconhece o domínio dos pacientes sobre a própria vida (corpo e mente) e o respeito à sua intimidade, restringindo, com isso, a intromissão alheia no mundo daquele que está sendo submetido a um tratamento; o principio da beneficência – que se refere ao atendimento do médico, e dos demais profissionais da área da saúde, em relação aos mais relevantes interesses do paciente, visando seu bem-estar, evitando-lhe quaisquer danos; o princípio da não maleficência – que contém a obrigação de não acarretar dano intencional e por derivar da máxima da ética médica: primum non nocere; e o princípio da justiça –  que requer a imparcialidade na distribuição dos riscos e beneficios da prática médica, pelos profissionais da área da saúde, procurando evitar a discriminação.

“Atualmente, encontramos em Bioética, além do principialismo,outros paradigmas, tais como: o naturalismo – que reconhece, a partir do direito natural, a existência de alguns bens fundamentais, como a vida, a religiosidade, a racionalidade; o contratualismo – que defende uma relação entre médico, paciente e sociedade a partir de um contrato de ordem jurídica; o personalismo – que partindo de uma visão antropológica objetiva defender a dignidade humana com base em suas características essenciais.”

Nesse sentido, podemos concluir que a Bioética abrange um conhecimento complexo que visa dar respostas em situações concretas visando sempre uma autonomia determinada. Tem natureza pragmática que se apoia nos quatro princípios, aplicada aos questionamentos morais suscitados pelas decisões clínicas e pelos avanços científicos e tecnológicos. É amparada pelo Biodireito.

Qual a importância da Bioética e do Biodireito?

Em síntese, podemos concluir que a Bioética é a disciplina que estuda os aspectos éticos das práticas médicas e biológicas, avaliando suas implicações na sociedade e as relações entre os homens e entre estes e outros seres vivos, indicando o rumo das condutas a serem adotadas visando o respeito à dignidade humana.

O Biodireito regula essas práticas. Costumo dizer que em matéria de Biotecnologia o céu é o limite, a Bioética problematiza e o Biodireito regula tudo isso impondo regras, normas de conduta e sanções.

Nos dizeres de Diego Gracia, ”Biodireito é a regulamentação jurídica da problemática da Bioética”, no sentido em que formula as relações peculiares entre ética e direito que se inter-relacionam reciprocamente: ética como instância prática do direito e direito como expressão positiva da ética.

Compreende o caminhar sobre o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição dos abusos contra o indivíduo ou contra a espécie humana.

Finca-se o Biodireito em vários princípios, semelhantes aos da Bioética: o princípio da autonomia; o princípio da beneficência; o princípio da não maleficência; o princípio da sacralidade da vida – refere-se à importância fulcral da proteção da vida quando das atividades médico-científicas. Vem elencado no art. 1º da Constituição Federal o princípio da dignidade humana, observado nas práticas médicas e biotecnológicas, visando a proteção da vida humana em sua magnitude. Liga-se este princípio ao da sacralidade da vida humana; o princípio da justiça; o princípio da cooperação entre os povos, que se refere ao livre intercâmbio de experiências científicas e de mútuo auxílio tecnológico e financeiro entre os países; o princípio da precaução, que sugere que se tomem cuidados antecipados às praticas médica e biotecnológicas, tendo em vista o caso concreto; o princípio da ubiquidade, que retrata a onipresença do meio ambiente e da integridade genética. Tem por valor principal a proteção da espécie, do meio ambiente, da biodiversidade, do patrimônio genético.

A Biotecnologia, por sua vez, pode ser definida como “a ciência tecnológica aplicada no ramo da Biologia, capaz de produzir, ou modificar organismos vivos ou derivados destes, para usos específicos, transferir genes de um organismo para outro, sendo esta transferência genética uma de suas principais ferramentas, proporcionando, desta feita, a melhoria dos métodos de produção e comercialização de produtos contendo processos biotecnológicos.

No Brasil, a Biotecnologia vem regulamentada pela Lei de Biossegurança – Lei 11.105/2005; pela Lei de Propriedade Industrial – Lei 9.279/1996.Nos centros mais industrializados, a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico avançado já despertaram discussões por força do avanço do conhecimento e de sua aplicação prática. Questão de grande relevância na atualidade é o estabelecimento de limites procedimentais éticos em contraposição à pesquisa tecnológica, principalmente quando se trata de atividade relacionada com a vida.

Desta forma, vemos que a partir do desenvolvimento de novos conhecimentos tecnocientíficos, amparado pelo domínio da genética e da tecnologia médica, instaurou-se na agenda mundial a discussão sobre os instrumentos normativos de proteção e de respeito à vida no ambiente biotecnológico.

Surge, nesse sentido, a importância fundamental do debate público relativo à elaboração de legislação específica que regule as diversas modalidades de intervenção da ciência sobre a vida, nas sociedades democráticas e pluralistas. Destaca-se, pois, a importância da Bioética e do Biodireito, posto que a grande preocupação contemporânea em matéria de ciência e biotecnologia abrange a questão da saúde e da qualidade de vida do homem.

O avanço da pesquisa científica revelou a ânsia do homem pela descoberta da cura de determinadas doenças hereditárias; pelo desenvolvimento de medicamentos; de equipamentos médico-hospitalares, o que leva à existência de novas realidades, e por consequência de novos debates bioéticos.

Qual a relação entre o Biodireito e o Direito de Família?

Intrínseca é a relação entre a Bioética, o Biodireito e a Biotecnologia e o Direito de Família. A Biotecnologia revolucionou a possibilidade de reprodução, introduzindo diversas possibilidades de realizar o sonho de família e o direito à parentalidade; trouxe novos questionamentos diante da utilização de cessão de útero (barriga de aluguel), de útero artificial, de doação e armazenamento de material genético e de embriões – trazendo para a atualidade a discussão sobre o destino destes, além da possibilidade de adoção e sucessão.

Destas técnicas defluem importantes questões ligadas à filiação, como a investigação de parentalidade genética; parentalidade biológica x parentalidade socioafetiva; os direitos do nascituro e sua proteção. Questiona-se, também, se existe proteção para o feto abortado em idade gestacional que o torne viável.

Também questões ligadas à esterilização de seres humanos; terapia gênica; a produção do chamado “ bebê medicamento”; a reprodução caseira; a gratuidade da cessão do útero x a possibilidade de pagamento; o sigilo do doador de material genético x o direito ao conhecimento da ascendência genética; a gratuidade da disposição do material genético x a possibilidade de contraprestação pecuniária; a necessidade (ou não) de consentimento do cônjuge/companheiro em face do direito ao aborto e esterilização.

Traduz a importância da influência da família para exarar o consentimento para determinadas condutas médicas como transplantes, cirurgias invasivas, participação em grupos de pesquisa científica e muito mais.

A reprodução assistida necessita de ampla regulamentação em nosso país, posto que desenvolve-se a cada dia, especificando-se e trazendo novos questionamentos com ampla repercussão no Direito de Família.

Filho nascido por reprodução assistida post mortem, após o inventário ser concluído, com trânsito em julgado, teria direito à herança? Se sim, qual a ação cabível? Anulatória? Rescisória? E qual o prazo?

Sim. Nos termos do artigo 1.597 do Código Civil há cobertura no âmbito da filiação para os seres gerados por concepção artificial homóloga, aquela que usa o material de ambos os genitores.

Segundo o Código Civil, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: “Havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido” ou “havidos quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga”.

Na reprodução assistida heteróloga, o filho nascido por reprodução post mortem tem direito à herança desde que tenha havido autorização prévia do marido.

A grande questão que se coloca é essa. Sempre pensamos no marido anuindo e a mulher recebendo, mas pode ser que aconteça o contrário: a mulher falece e o marido se vale do material genético daquela mulher para inseminar outra mulher e, a partir daí, ter sua filiação.

Uma vez nascida a criança, é comprovado o vínculo de filiação. E o que comprova isso é a carga genética, na homóloga, e a autorização, na heteróloga.  E aí se faz o elo familiar e, portanto, sucessório.

A gente esbarra sempre no prazo. Num primeiro momento, o prazo inicial para que o herdeiro tenha a seu favor é o prazo da petição de herança, que tem 10 anos para ser intentada. Tendo em vista, dentro da reprodução assistida homóloga, a falta de autorização, a dignidade da pessoa humana e o melhor interesse do menor.

No meu livro “Curso de Direito das Sucessões”, está ali pacificada a questão: “A jurisprudência já se pacificou no entendimento de que, independentemente da forma em que a partilha foi feita, amigável ou judicial, se houver exclusão do herdeiro que participou do inventário, está a partilha eivada de nulidade absoluta e, assim, o herdeiro prejudicado que não fica adstrito à ação de anulação nem à rescisória e seus respectivos prazos de decadência, podendo se utilizar da querela da ação de nulidade ou da ação de petição de herança”.

Deve-se ainda observar que o prazo máximo da prescrição previsto no Código Civil é de dez anos. À luz do artigo 205 do Código Civil.

Essa ideia é compartilhada com nosso querido e inesquecível professor Zeno Veloso, que assim também se posiciona no “Código Civil Comentado”, obra que ele participa ao lado do professor Carlos Alberto Dabos Maluf.

Fonte: IBDFAM ( Instituto Brasileiro de Direito de Família) Imagem: por Rodolfo Clix no Pexels

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