Justiça de São Paulo concede divórcio post mortem
Em decisão recente, a 3ª Vara da Família e das Sucessões de Santos, em São Paulo, concedeu o divórcio a uma mulher cujo marido morreu durante o processo, após apresentar contestação. O entendimento é de que a jurisprudência já admite a possibilidade do decreto do divórcio post mortem em hipóteses de falecimento do cônjuge no curso da ação, quando já manifestada a vontade de qualquer uma das partes de se divorciar.
A decisão é da juíza de Direito, Mariella Amorim Nunes Rivau Alvarez, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Na sentença, que determinou efeitos retroativos à data da propositura da ação, a magistrada considerou que a alteração deve necessariamente ser precedida da regulamentar comunicação à parte contrária, pela citação – como é o caso dos autos.
“A ação contendo a manifestação de vontade inequívoca da autora voltada à decretação do divórcio foi ajuizada antes do óbito do réu, que restou regularmente citado, cumprindo-se a necessária triangulação da lide”, frisou a juíza.
No entendimento da magistrada, “por se tratar de direito potestativo da parte autora, cuja manifestação de vontade vem bem expressa na petição inicial, o divórcio deve ser decretado, com efeitos retroativos à data da propositura da ação”.
Ainda conforme a sentença, não há necessidade da sucessão processual, tendo em vista que o casal não adquiriu bens durante o casamento e a certidão de óbito não indicou a existência de bens deixados.
Relações jurídicas
Segundo a juíza Mariella Amorim, o conceito de família está em constante evolução. “Atualmente, o afeto e a busca da felicidade passaram a figurar como elementos essenciais de sua formação, responsáveis por estabelecer (e também por dissolver) o elo de solidariedade, cumplicidade e respeito.”
“As relações íntimas são dinâmicas, dialéticas e mutáveis. Natural que os vínculos se constituam e se desconstituam no mundo dos fatos, com reflexos certeiros nas relações jurídicas dos envolvidos, devendo o julgador, portanto, estar bastante atento a essas realidades”, observa.
De acordo com a magistrada, dentro da ordem das coisas, o processo deve servir ao mundo dos fatos, não o contrário. “O divórcio post mortem, portanto, longe de retratar um preciosismo teórico, é a configuração prática da realização de justiça.”
“Imagine-se um casal casado pelo regime da comunhão parcial de bens, sem filhos comuns (somente unilaterais) e patrimônio composto por bens comuns e bens particulares. Imagine-se, ainda, que a virago tenha ingressado com ação de divórcio, o réu tenha sido citado e, no decorrer do processo, venha ela a falecer”, exemplifica.
Ela continua: “Se a ação de divórcio for extinta sem resolução de mérito, o réu passará ao estado de viúvo e, além de meeiro do patrimônio comum constituído na constância do casamento, poderá concorrer com os filhos da de cujus na condição de herdeiro necessário dos bens particulares deixados por ela, mesmo já inexistente a affectio maritalis e mesmo diante da já inequívoca e expressa manifestação de vontade dela se de divorciar. Não há razoabilidade nisso”.
Fundamento
Ao avaliar o caso, a magistrada considerou a Emenda Constitucional 66/2010. A norma alterou o artigo 226, § 6º, da Constituição Federal, e desvinculou a decretação do divórcio tanto da análise da culpa quanto do atendimento a prévio prazo de separação.
“Tal modificação tornou imperiosa a decretação do divórcio sempre que formada a relação processual, justamente por versar direito potestativo e, portanto, incondicional de cada cônjuge individualmente considerado”, observa Mariella.
Também foi considerado o artigo 24, parágrafo único, da Lei 6.515/1977, segundo o qual a ação de divórcio é personalíssima, ou seja, somente pode ser ajuizada pelos cônjuges. “De fato, assim como a celebração do casamento exige o respeito a determinadas formalidades, nas quais se incluem a manifestação pessoal e inequívoca da vontade dos contraentes, a dissolução do casamento segue o mesmo caminho.”
“Além disso, a morte já configura causa legal de extinção do vínculo (CC, art. 1.571, I, § 2º), inexistindo, por isso, interesse processual do cônjuge sobrevivente no ajuizamento da ação de divórcio após o óbito do outro. Neste caso, havendo separação de fato prévia ao óbito, as questões patrimoniais dos cônjuges deverão ser resolvidas com aplicação da regra contida no art. 1.830 do Código Civil”, explica a juíza.
No entendimento da magistrada, a potestatividade do direito “significa apenas que o divórcio independe da concordância da parte contrária, nunca que a ação judicial voltada a esse fim não necessite se submeter às regras processuais e aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa antes da prolação da decisão definitiva”.
“Demais disso, importante ter em mente que, versando sobre questão de estado afeta aos direitos da personalidade, qualquer alteração no estado civil dos cônjuges deve necessariamente ser precedida de regular comunicação à parte contrária, que se dá, na prática, por meio da citação, a fim de que tome conhecimento da vindoura extinção do vínculo matrimonial e, consequentemente, da inevitável modificação em seu estado civil”, avalia.
Post mortem
Ainda de acordo com a juíza, se o óbito posterior ao ajuizamento da demanda for do réu, a decretação post mortem do divórcio pleiteado pelo autor, ainda que se trate de direito potestativo, pressupõe que a ação esteja, ao menos, triangulada. “Na hipótese específica de falecimento do réu após o ajuizamento da ação, mas antes da citação, inviável será a decretação do divórcio post mortem, ante a impossibilidade do regular estabelecimento do contraditório e da ampla defesa, necessários a viabilizar a decisão de mérito (neste caso, havendo separação de fato prévia ao óbito, as questões patrimoniais dos cônjuges deverão ser resolvidas com aplicação da regra contida no art. 1.830 do Código Civil, à semelhança do que ocorre na hipótese do óbito do cônjuge ser anterior ao ajuizamento da ação de divórcio).”
“Por outro lado, mas na mesma linha de raciocínio, se o autor ajuizar ação visando a decretação do divórcio e, na sequência, falecer, o réu deverá ser citado (se ainda não o foi) e o divórcio, então, poderá ser decretado, por se tratar de direito potestativo do autor, cuja manifestação inequívoca de vontade já consta expressa na petição inicial”, destaca.
Na visão da juíza, a substituição processual prevista nos arts. 687 e seguintes, do CPC, com a habilitação dos herdeiros do cônjuge falecido, “somente será viável na hipótese do de cujus ter deixado bens a serem partilhados em decorrência da mancomunhão, ou se, pelas alegações, constatar-se a existência de interesse patrimonial sucessório dos herdeiros do cônjuge pós-morto”.
“Nessas condições, por envolver questão afeta ao direito patrimonial, a sucessão processual não encontrará óbice na intransmissibilidade da demanda de estado. Em contrapartida, inexistindo bens a serem partilhados entre os cônjuges ou interesse patrimonial sucessório dos herdeiros do cônjuge pós-morto (e já tendo ocorrido, ao menos, a citação, caso o óbito seja do réu), basta que o divórcio seja decretado, sem necessidade da sucessão processual”, pondera Mariella.
Ela conclui: “A decretação do divórcio póstumo produzirá efeitos não a partir da data da sentença, já que proferida após o óbito de um dos cônjuges, mas sim a partir da data do ajuizamento da ação (quando ambos ainda eram vivos), marco que demonstra a manifestação de vontade inequívoca do cônjuge em dissolver o matrimônio”.
Fonte: IBDFAM (com informações do TJSP) – Imagem: por Bich Tran no Pexels
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