Projeto de lei apresentado na Câmara busca regulamentar herança digital; autora da proposta e especialistas comentam

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Um projeto de lei apresentado no fim de março na Câmara dos Deputados busca regulamentar a chamada “herança digital” no Direito Civil brasileiro. Com alterações no Código Civil e no Marco Civil da Internet, o PL 1.144/2021 busca definir quem tem direito a recorrer em ações de danos contra a imagem de pessoas mortas, passa a incluir ativos digitais na herança e garante a possibilidade de que conteúdos sejam removidos após a morte.

O texto é da deputada Renata Abreu, do Podemos de São Paulo. A proposta inicial busca fazer alterações no Código Civil: no artigo 12, passa a ter direito a exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos de um falecido  “o cônjuge ou o companheiro sobrevivente, parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau, ou qualquer pessoa com legítimo interesse”.

Estas mesmas personalidades poderão proibir a transmissão de palavras ou exibição pública de imagem prevista no artigo 20. O texto também cria um novo artigo 1.791-A para incluir no conceito de herança “os conteúdos e dados pessoais inseridos em aplicações da Internet de natureza econômica”, o que pode incluir aplicações em criptomoedas como o bitcoin, por exemplo.

“Além de dados financeiros, os conteúdos e dados de que trata o artigo abrangem, salvo manifestação do autor da herança em sentido contrário, perfis de redes sociais utilizados para fins econômicos, como os de divulgação de atividade científica, literária, artística ou empresária, desde que a transmissão seja compatível com os termos do contrato”, aponta o §1º. Já o §3º impede aos herdeiros o acesso a mensagens de conversas privadas, salvo se seu conteúdo tiver natureza econômica.

As alterações no Marco Civil da Internet, publicado em 2014, poderão ordenar aos provedores de aplicações de internet que excluam as contas públicas de usuários brasileiros mortos, mediante comprovação do óbito. Apesar da exclusão, as contas devem ser mantidas por ao menos um ano nos servidores da empresa.

Corpo eletrônico

Para a autora do projeto, há um acúmulo de informações virtuais que permitem entender a existência de um corpo eletrônico. “É indiscutível, sobretudo quando se fala em perfis de redes sociais, que as imagens, vídeos, áudios e escritos inseridos em semelhantes aplicações constituem importante elemento da personalidade de seu titular”, pondera a autora em sua justificativa. “As publicações públicas (abertas a quem tenha acesso às aplicações ou a pessoas determinadas, como amigos ou grupos) são uma forma de se apresentar em sociedade, de deixar-se conhecer.”

“Embora seja comum falar-se em herança digital, o ideal é que essa ideia se restrinja a aspectos patrimoniais”, escreveu Renata. “Dessa forma, propomos que (i) os dados constantes de aplicações com finalidade econômica sejam considerados herança e transmitidos de acordo com as regras do direito das sucessões; (ii) que a exploração de aspectos da personalidade (como imagem, voz, vídeos etc.) constantes de aplicações sejam também transmitidos como herança, quando não haja disposição em sentido contrário do de cujus.”

Neste caso, embora dotados de valor econômico, o que seria potencializado pelo uso post mortem das contas digitais, a deputada entende não parecer adequada a exploração desses elementos da personalidade quando seu titular tenha se manifestado contrariamente.

Discussão é bem-vinda, mas texto carece de melhorias, observa especialista

A discussão sobre a regulamentação da herança digital é bem-vinda, na visão de especialistas em Direito de Família. O texto, no entanto, precisará passar por ajustes para poder se manter atualizado e interligado a outros temas.

Para o vice-presidente da Comissão Nacional de Família e Tecnologia do IBDFAM, Marcos Ehrhardt Júnior, a pandemia de Covid-19 e seu elevado número de mortes fazem com que o debate ganhe força e relevância neste momento. “O projeto é positivo pois traz o tema para discussão”, ponderou o advogado. “Ao tentar resolver um problema, como há muitos assuntos novos, irá acabar criando outros.” 

Ehrhardt considera o texto “tímido”, seja pela natural dificuldade de se tratar de um tema novo, seja pela dificuldade do texto em se comunicar com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, que entrou em vigor no ano passado. “A LGPD estabelece vários direitos do titular, e o projeto garante o direito de acesso às contas aos herdeiros salvo manifestação em contrário – mas como será esta manifestação? Há que se fazer isso em um testamento? Em um documento escrito? Há que se fazer isso em todas as suas redes sociais, ou ele tem de fazer em cada uma delas?” questionou. “O texto pode ser melhor? pode, e pode se avançar e melhorá-lo. Mas o texto está sendo apresentado em um momento onde há muito dissenso de autores sobre a natureza dessa herança.”

Para Ana Carolina Brochado, também membro do IBDFAM, que co-coordenou a edição do livro “Herança Digital”, a origem da discussão é sobre como separar corretamente tais ativos. “São dois institutos que estavam sendo colocados no meio do que está se chamando de ‘herança digital’: o que é transmissível, por ter conteúdo de direito sucessório em função desta patrimonialidade; e o que é direito à personalidade, que não é transmissível e envolve a privacidade do de cujus e de terceiros com que ele se comunica”, disse a especialista, para quem o PL vem a cobrir tais lacunas.

A advogada aponta que o texto apresentado na Câmara vai além da pouca jurisprudência que há no país em relação ao tema – no entanto, ambos seguem no mesmo sentido. Em uma decisão de São Paulo, uma mãe não teve acesso às conversas de uma filha no Facebook, por não ter havido autorização expressa da filha para tal. Decisões recentes do Mato Grosso do Sul e de Minas Gerais, segundo a advogada, estariam na linha de que tais conteúdos eram privados, não garantindo o acesso aos ativos. “O PL aponta para uma direção seguida pelo Judiciário, mas estamos em uma fase muito embrionária, no Judiciário, para dizer qual é a tendência a ser seguida”, concluiu Ana Carolina.

Fonte: IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito da Família) Por Guilherme Mendes – Repórter em BrasíliaImagem: de athree23 por Pixabay

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