Ghosting: existem implicações judiciais para o término repentino de relacionamento?
Duas pessoas se conhecem virtualmente, trocam número de telefone, se encontram pessoalmente e iniciam um relacionamento. Tudo parece bem até que uma delas desaparece. Para de responder mensagens e não atende ao telefone, sem dar explicações. Esse rompimento repentino é popularmente conhecido como ghosting, termo em inglês derivado da palavra ghost, que significa fantasma.
Atualmente, no Brasil, a expressão ganhou projeção por conta da novela “Travessia”, em exibição na TV Globo, após uma das personagens ser abandonada de forma repentina pelo então namorado. O assunto tem gerado discussões acaloradas na internet, mas uma dúvida tem ficado no ar: existem implicações judiciais para o ghosting?
“A legislação brasileira, a princípio, não possui uma previsão legal que obrigue um indivíduo a permanecer em um relacionamento com outro, ou mesmo uma norma que determine a forma correta que se dará o término de uma relação afetiva, evitando que um indivíduo permaneça em uma espera eterna por respostas ou explicações”, explica a advogada Fernanda Las Casas, diretora do núcleo regional Santos do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
“No entanto, é importante compreender que sempre é exigida a boa-fé nas relações afetivas, a qual se transveste em um verdadeiro dever jurídico, que impõe um comportamento ético, coerente, sem criar falsas expectativas”, ela acrescenta.
Abandono e solidão
Fernanda explica que, sempre que há uma ruptura repentina em um relacionamento amoroso que, a princípio, parecia saudável, floresce imediatamente a sensação de abandono e de solidão. No contexto da popularização das redes sociais e do uso de aplicativos de relacionamento, ela observa que o ghosting se acentuou.
“Esta forma fluida de relacionar-se, sem um contato direto com a outra pessoa, pode deixar a impressão de que não existe a necessidade de obedecer às mínimas regras sociais de conduta, educação e convívio nos ambientes digitais”, ela comenta.
A advogada aponta que o ambiente digital pode passar a ideia de que existe uma liberdade absoluta e implícita em desconsiderar os padrões de convívio social existentes no off-line.
“Isso não é verdade, afinal são pessoas que estão no mundo off que se conectam por meio de aplicativos e redes de relacionamento no mundo on, e o fazem com a expectativa de viver experiências reais com outras pessoas também no mundo off, e não com inteligências artificiais. Desta forma, independente de qual inovação tecnológica que proporcionará o encontro entre indivíduos, sempre serão aplicadas as normas de condutas sociais e a legislação vigente”, explica Fernanda.
Ghosting pode gerar indenização?
Muita gente se pergunta se o término repentino de relacionamento, o ghosting, pode gerar indenização. No ordenamento jurídico brasileiro, isso é assegurado quando existe o dever de reparação, consequência de um comportamento ilícito que gerou danos a outra pessoa. Na esfera afetiva, a coisa é diferente.
“É importante mencionar o princípio do venire contra factum proprium, que se traduz na proibição de comportamento contraditório, que evidencia de modo imediato a essência da obrigação de um comportamento conforme a boa-fé objetiva, ou seja, conforme o senso ético esperado de todos”, Fernanda Las Casas aponta.
“Em outras palavras, aquele indivíduo que está em uma troca intensa de mensagens pelo ambiente digital, com encontros (ou não) e, depois, sem maiores explicações e por opção, ignora o outro indivíduo e desaparece do convívio digital, viola o princípio da boa-fé, diante do abuso de um direito, diante do seu comportamento contraditório”, acrescenta.
Sendo assim, para avaliar o dever indenizatório seria necessário “verificar o dano gerado pelo comportamento contraditório”. “Caso existam provas fortes que relacionam aquele comportamento, a um dano – material ou moral –, poderemos falar sobre o dever de indenizar”, pontua.
Ainda assim, a advogada reforça que o dano deve ser provado por meio de um sólido nexo de causalidade entre o ato do desaparecimento do indivíduo atrelado com as expectativas geradas pelo comportamento contraditório e o dano suportado pelo abandonado.
“Neste contexto, entendo que só é possível falar em indenização pelo ghosting em casos muito pontuais, pois, parafraseando a Ministra Nancy Andrighi, também defendo que ‘ninguém é obrigado a amar'”, afirma.
Regimes de relacionamento
Também é possível analisar o ghosting em diferentes regimes de relacionamento. No caso do casamento, por exemplo, se um dos cônjuges desaparecer, sem dar explicações, Fernanda Las Casas apresenta duas hipóteses.
“Pode enquadrar-se como abandono do lar e, caso o cônjuge que saiu da residência do casal não propor ação judicial em dois anos para divórcio e partilha de bens, ele pode perder seus direitos sobre o imóvel em que a família residia, nos termos do art. 1.240, do Código Civil. E, se este cônjuge, sem justa causa, não prestar ajuda material aos filhos, pode até perder o poder familiar pelo abandono material (art. 244 do Código Penal)”, aponta.
“No caso de desaparecimento do cônjuge sem causa aparente é possível pleitear o divórcio com a nomeação de curador, ou ainda, caso não tenha a intenção no divórcio, entrar com ação de declaração de ausência e iniciar a sucessão provisória para os herdeiros”, diz.
Se o rompimento repentino acontece em uniões estáveis, a qual é reconhecida como entidade familiar, são garantidos aos conviventes os mesmos direitos e deveres previstos no casamento. “Para o exercício destes direitos, é importante que exista um documento prévio para provar a existência da relação, como um contrato particular ou uma escritura declaratória de união estável”, ela avalia.
No caso do namoro, o término repentino em si não se trata de nenhum ato ilícito, e sim da livre liberdade de agir.
“Contudo, o namoro sério, reconhecido como compromisso de casamento (noivado), poderá gerar efeitos, em caso de um término repentino na véspera da cerimônia (ressarcindo as despesas com os preparativos), ou ainda no não comparecimento à cerimônia (gerando o dever de indenização por dano moral somada à indenização por dano material)”, ela pontua.
‘Estelionatos sentimentais’
Fernanda Las Casas salienta que não é possível se proteger juridicamente de uma rejeição afetiva repentina. “No universo jurídico, é assegurado ao indivíduo a sua liberdade de agir.
Contudo, não são raros os casos de pessoas que caem em golpes em relacionamento digitais, os chamados ‘estelionatos sentimentais’ e só percebem se tratar de relacionamentos com pessoas ‘fakes’ após o completo desaparecimento da pessoa.”
“Desta forma, para proteger-se, caberá a todos nós o desenvolvimento do senso crítico para não se seduzir a palavras gentis de pessoas desconhecidas na internet e, simultaneamente, sermos corajosos para vencer a solidão e nos relacionarmos no mundo líquido em que vivemos”, ela conclui.
Fonte: IBDFAM ( Instituto Brasileiro de Direito de Família) Imagem: por Eren Li no Pexels
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